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Os dilemas do jornalismo diante das Big Techs, por Carlos Castilho

15 de abril de 2024

(Imagem: Biljana Jovanovic por Pixabay)

O futuro dos conglomerados de imprensa, tanto aqui como no resto do mundo, depende da sua relação com as redes sociais virtuais

A politização e a judicialização do debate sobre a regulamentação das redes sociais empurraram para um preocupante segundo plano a análise de duas questões com graves consequências tanto para o conjunto da sociedade como para o exercício do jornalismo e a sobrevivência da imprensa. Estamos sendo colocados diante de duas abordagens possíveis do problema das redes: uma simplificada, graças à transformação do debate numa disputa entre um lado bom e outro mau, embutindo a falácia de que haverá um vencedor e o problema estará resolvido; e outra mais complicada, porque exige mais reflexão e equilíbrio, mas que aponta na direção de um desfecho consensual.

A surpreendente intervenção de Elon Musk, o errático bilionário dono da empresa X (ex-Twitter), politizou o debate sobre a regulamentação das redes sociais no Brasil. Coincidência ou não, parlamentares de extrema direita no Congresso Nacional polarizaram a discussão transformando-a num combate entre esquerda e direita. As declarações de Musk pedindo a demissão do ministro Alexandre de Moraes agravaram ainda mais a crise, ao colocar também o Supremo Tribunal Federal (STF) no meio da convulsionada e caótica polêmica sobre o futuro das plataformas digitais no Brasil. 

É muita coisa para ser analisada num único texto, por isto vou me concentrar nas duas questões que a curto e longo prazo definirão o relacionamento entre imprensa e redes sociais, independentemente do resultado do atual debate entre “mocinhos e bandidos” na questão da regulamentação. O futuro dos conglomerados de imprensa, tanto aqui como no resto do mundo, depende da sua relação com as redes sociais virtuais, como Facebook, X , TikTok, Instagram, YouTube, WhatsApp, Kwai e Bluesky, por exemplo. Os grandes jornais brasileiros têm passado ao seu público a ideia de que há um antagonismo editorial entre a imprensa e as redes sociais. A realidade, no entanto, é que a divergência é essencialmente financeira e comercial. 

A atual troca de acusações e atritos comerciais tem a ver com dinheiro e só secundariamente com questões como desinformação, fake news e reprodução de notícias. A imprensa tradicional acusa as redes de não pagarem direitos autorais pela republicação de textos e imagens produzidos por jornais, emissoras de radio e de televisão. Por isso, exigem uma lei que lhes garanta este pagamento, que se for aprovada no Congresso dará uma sobrevida à imprensa convencional, em crise por causa da desatualização do seu modelo de negócios decorrente da migração de anunciantes e de público para a internet. 

Direitos autorais e notícia feita nas redes

No fundamental, é uma quebra de braço entre um setor empresarial, em franco declínio devido a inovações tecnológicas revolucionárias no setor da comunicação e informação e uma nova elite corporativa, que acumula lucros fantásticos ao explorar a ausência de regras num espaço virtual em frenética evolução. A estratégia usada pela grandes grupos da imprensa brasileira é procurar mascarar a natureza financeira do antagonismo dando mais visibilidade à questão das notícias falsas, um tema que a maioria das pessoas já conhece e condena. 

A solução das diferenças financeiras e comerciais entre a mídia tradicional e as grandes plataformas digitais, mais conhecidas como as Big Techs (Microsoft, Alphabet, Meta, Apple e X) é complexa porque envolve a questão dos direitos de autoria, um tema que pode ser visto por dois ângulos diferentes. O tradicional, onde, por exemplo uma reportagem, fotografia, vídeo ou ilustração tem o tratamento de uma mercadoria acabada e precificada, enquanto no ambiente digital, qualquer conteúdo textual, sonoro ou visual pode ser remixado infinitamente, dificultando muito a monetização das notícias jornalísticas. 

O que poucos se dão conta é o fato de que as redes sociais já são, e tendem a se tornar mais ainda no futuro, o verdadeiro público do jornalismo. Até agora a imprensa usava as redes sociais para exibir sua produção jornalística, uma espécie de banca virtual de jornais. A tendência atual é no sentido inverso. A imprensa passa a se alimentar de notícias a partir das redes porque elas estão se transformando no espaço público para debates. 

 É um processo irreversível porque a digitalização da comunicação e da informação se incorporou de tal forma no nosso cotidiano que não há mais volta possível. Também é muito mais amplo do que as tentativas de aplacar as queixas e lamentações da mídia tradicional a propósito da proliferação da desinformação, xenofobia, discurso do ódio, desvios sexuais e psicopatias sociais na internet.  

A remixagem de notícias

O papel mais importante e menos discutido das redes é o de produzir conhecimento por meio da interação e recombinação de dados, fatos, eventos e ideias postados na internet por todo tipo de pessoa. Este processo de remixagem de conhecimentos assumiu proporções inéditas na história e seu potencial é impossível de dimensionar e avaliar, conforme mostram estudos recentes sobre inteligência artificial (IA). 

O jornalismo ocupa um papel central nesta recombinação, apesar de já ser público e notório que a profissão perde gradualmente a sua função de principal provedora de notícias para o espaço público de debates. Hoje, a notícia é cada vez mais produzida a partir das postagens de pessoas comuns, empoderadas por ferramentas como celulares inteligentes, tablets, computadores portáteis, filmadoras digitais etc. 

Como o número de atores com acesso à internet já chega a quase cinco bilhões de seres humanos, não há mais possibilidade de o jornalismo competir em quantidade de dados, fatos e eventos postados em rede. O que começa a ser cobrado, com intensidade crescente, é a participação do jornalismo e da imprensa na qualificação do material informativo disponível nas redes, o que exige dos profissionais uma revisão profunda de suas funções e formação técnica. 

O jornalista torna-se essencial no fluxo de informações na condição de curador, tutor ou checador de dados, fatos e eventos. Até agora, esta função era exercida junto com a produção de notícias, mas, na era digital, este paralelismo de tarefas se tornou inviável por conta do aumento exponencial no volume de material a ser analisado. Trata-se de uma missão com enormes repercussões sociais, já que a produção de conhecimentos depende diretamente da verificação da qualidade das informações inseridas no espaço das redes sociais. Cabe agora ao jornalismo e à imprensa decidirem qual o rumo a tomar diante dos desafios colocados pelas Big Techs.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.

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FONTE: JORNAL GGN

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