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Pós-fotografia, por Wilson Ramos Filho

6 de abril de 2023

Imagem: Reprodução

Michael Christopher Brown resolveu ganhar dinheiro com a utilização de «fotografias» criadas pela inteligência artificial.

por Wilson Ramos Filho

Tudo o que se pretende pós-algo deve acender nossos alertas e ativar nossas autodefesas.

A pós-verdade, por exemplo, é a mentira gourmetizada por uma sequência de mecanismos que se, na origem, se pretendia apenas ser uma profecia que se auto-realiza, converte-se por complexos mecanismos de ocultação e de construção de de enredos, até conta-factuais, em realidades paralelas.

Na maneira bolsonara de existir em sociedade a pós-verdade se apresenta como método de construção de realidades artificiais por intermédio das chamadas «narrativas» que, fundadas na mentira, se transmutam em «opiniões» tão válidas e «verdadeiras» quanto as que correspondem aos fatos ou quanto as que decorrem de avançadas pesquisas científicas. Na gnoseologia da pós-verdade teses doutorais ou consensos científicos têm o mesmo valor intrínseco do que uma mensagem recebida por intermédio de uma rede social, para grupos cada vez mais numerosos de pessoas com gravíssimas distorções cognitivas e grotescas dissociações da realidade objetiva. Para as «tias do zap» e para os «tiozões do Telegram» a verdade sempre é relativa conformando uma quase «filosofia de vida», uma «maneira de existir» em grupos de afinidade que se unem aos demais por identificação a determinados topoi aristotélicos, em que tópos como liberdade, pátria, deus, família, propriedade, armas, moral, tradições, supremacia, formam a base de entendimentos compartilhados que orientam escolhas cotidianas, em determinado sentido e em certa direção, para milhares de grupos de relacionamento virtual que compartem «narrativas» construídas socialmente. Pós-verdade, na realidade, é a mentira que é aceita e partilhada como fato, como «narrativa» ou como opinião pública consensual em determinadas redes sociais.

Não bastasse a pós-verdade, agora somos confrontados com a possibilidade de construção de discursos com a utilização da «inteligência artificial» de computadores e de programas de informática mais artificial ainda do que aquelas «narrativas» que a extrema-direita espalha nos grupos de WhatsApp ou Telegram. E não apenas por intermédio de textos, mas também de imagens. Surge a pós-fotografia.

O ativista político Michael Christopher Brown resolveu ganhar dinheiro com a utilização de «fotografias» criadas pela inteligência artificial. Como se sabe, o fotojornalismo registra fatos em fotos, para tornar público e memorizar aspectos da realidade através de imagens. Na pós-fotografia as imagens são inventadas pela inteligência artificial.

Sem se questionar a respeito das consequências desumanas do bloqueio continental econômico imposto pelos EUA ao povo cubano, o esperto pós-fotógrafo criou, com a ajuda da inteligência artificial, 400 imagens de fatos inexistentes, «registrando» imagens de balsas e refugiados criados por computador. E vende cada uma delas por 1 ETH, criptomoeda cotada em quase dez mil reais a unidade. Por um ethereum pode-se comprar uma imagem (uma pós-fotografia) única em um token não fungível (NFT). Desembolsando o valor equivalente a 1 ETH qualquer pessoa pode ser proprietária de uma imagem virtual, não fungível e não real, registrada como um símbolo eletrônico criado em uma plataforma blockchain, de refugiados cubanos que não existem na realidade objetiva, contribuindo com 10% deste valor, para a manutenção de alguma entidade de extrema-direita sediada na Flórida para «acolher os refugiados que conseguiram fugir do comunismo cubano».

Na pós-ética, da pós-verdade, da pós-fotografia, pouco importa que «aquelas balsas e aquelas pessoas» não existam no mundo real. Outros refugiados, de carne e osso, em balsas reais, efetivamente cruzam as 90 milhas náuticas que separaram Cuba e Flórida, que separam o comunismo do capitalismo. Na pós-verdade da pós-fotografia, a verdade é mera narrativa.

A pós-fotografia comercializada, por quase dez mil reais cada uma, existe tanto quanto a criptomoeda utilizada nesta transação comercial, existe tanto quanto o Non-Fungible Token que tenta lhe emprestar materialidade inexistente, existe tanto quanto a mamadeira fálica, tanto quanto o kit-gay, tanto quanto os planos para assassinar o juiz incompetente e parcial, tanto quanto o deus que está acima todos na maneira bolsonara de existir em sociedade, na maneira de viver pós-tudo, quando a realidade é multifacetada e onde estilhaços de narrativas contraditórias só seriam decifráveis e dotadas de sentido, a posteriori, nos grupos das redes sociais por afinidades, nos cultos religiosos onde a «verdade» é revelada ou nas reuniões organizadas pela extrema-direita para, preservando as tradições, o modo de vida e as instituições, resistir às investidas de inimigos inventados.

Xixo, 05 de abril de 2023

Fonte: Jornal GGN

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