Golpe de 2023: Facebook, Twitter-X, YouTube não sentarão no banco dos réus?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

REPRODUÇÃO
Os barões dos dados preferiram garantir espaço para Bolsonaro pregar ódio, deslegitimar democracia, espalhar Fake News, atacar o TSE e o STF
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Estou acompanhando atentamente o desenrolar do caso envolvendo Jair Bolsonaro e seus parceiros referente ao crime de tentativa de golpe de estado. Quando li a denúncia ofertada pelo PGR notei um paradoxo insanável: a acusação menciona que o desenrolar da trama golpista ocorreu fundamentalmente através de mensagens telefônicas e da deslegitimação do sistema eleitoral com utilização de plataformas de internet. Todavia, os donos das próprias plataformas não foram incluídos como co-autores do crime apesar de terem poder de interromper a propaganda golpista.
Os barões dos dados preferiram garantir espaço para Jair Bolsonaro pregar ódio, deslegitimar o regime democrático, espalhar Fake News, atacar o TSE e o STF. Eles fizeram isso para auferir lucro com o imenso fluxo de cliques gerados pelas lives e postagens do capitão golpista e seus parceiros e seguidores. Não há dúvida, portanto, que os donos do Facebook, Twiter-X, YouTube etc… aderiram ao golpe por razões privadas e mesquinhas. Isso por si só não deveria ser motivo para eles não serem denunciados, porque sem a ajuda deles e dos algoritmos das plataformas, desenhados para impulsionar conteúdos que geral grande engajamento emocional, a orgia de violência e destruição em Brasília no dia 08/01/2023 não teria ocorrido.
A questão jurídica fundamental que poderia ser levantada pela defesa seria uma nulidade fundamental: o fato do PGR ter escolhido denunciar Jair Bolsonaro e seus parceiros deixando de incluir como co-autores do crime os donos das Big Techs que obtiveram lucro impulsionando conteúdos antidemocráticos durante a trama golpista antes, durante e depois das eleições. A plausibilidade dessa questão existe e o STF poderia ser obrigado a julgá-la.
Entretanto, nenhum dos réus desse processo ousou levantar essa questão preliminar espinhosa. Em respeito aos colegas que atuam no caso fiquei calado. Agora que as preliminares técnicas foram todas rejeitadas me sinto a vontade para dissertar sobre esse assunto.
Bolsonaro e seus cúmplices não estão sendo injustamente perseguidos. O PGR apresentou indícios de provas suficientes da materialidade do delito, da unidade de propósitos, dos atos praticados e do resultado político ambicionado. O crime imputado aos réus provavelmente ocorreu e no mínimo deve ser objeto de instrução e julgamento com as evidentes garantias do devido processo legal. Portanto, me parece correta a decisão proferida pelo STF no sentido de aceitar a denúncia transformando os líderes da tentativa de golpe de estado em réus. Mesmo assim, não me parece que o PGR pudesse nesse caso isentar de responsabilidade os donos de Big Techs.
Desde as revoluções coloridas no Oriente Médio e do golpe de estado bem-sucedido na Ucrânia, é notória a ligação entre as plataformas de internet e movimentos antidemocráticos. No Brasil, o Impeachment sem crime de responsabilidade imposto a Dilma Rousseff não teria ocorrido se a campanha de ódio contra o governo dela não fosse impulsionada no Facebook até explodir nas ruas e ganhar ainda mais corpo em outras plataformas de internet (YouTube e Twitter). Existe uma vasta literatura sobre esse assunto que poderia ter sido explorada pelos advogados dos golpistas e não foi.
Bolsonaro e seus parceiros foram de certa maneira seduzidos pela ideia de que poderiam provocar uma ruptura da legalidade porque esse tipo de coisa estava começando a se tornar corriqueira em outros países. Corriqueira e extremamente lucrativa para empresas cuja remuneração depende da quantidade de cliques e de compartilhamento de textos, vídeos, comentários, fotos, etc. É claro que os golpistas sabiam o que estavam fazendo, mas também é evidente que os donos das Big Techs não podem dizer que foram usados. Eles toleraram o movimento golpista e o impulsionaram porque isso lhes permitiu ganhar uma montanha de dinheiro.
É justo que os golpistas respondam pelos crimes que cometeram, sem dúvida. Mas é injusto que o mesmo não ocorra com os sócios comanditários deles. Sócios que nesse caso não são ocultos, pois o conjunto probatório que fundamenta da denúncia atesta de maneira satisfatória a participação das plataformas de internet. Restava apenas ao PGR incluir os donos delas como co-réus da trama golpista a partir da averiguação contábil do que eles lucraram e poderiam ter deixado de lucrar se optassem por interromper a campanha de ódio, Fake News, etc…
Obter lucro com um golpe de estado ou fazer isso impulsionando uma campanha golpista não pode ser considerado algo normal, aceitável ou lícito. Especialmente num contexto sócio-político em que a campanha golpista do clã Bolsonaro não ganharia a força que ganhou até explodir em Brasília no dia 08/01/2023 com toda sua força destrutiva.
Como os donos das Big Techs não foram denunciados, os réus poderiam ter alegado nulidade da proteção concedida a eles em virtude da seletividade penal do PGR. Bolsonaro e seus parceiros não fizeram isso, preferindo levantar preliminares técnicas que seriam previsivelmente rejeitadas. Agora que todas as preliminares foram efetivamente rejeitadas não há mais nada que possa ser feito, exceto discutir a questão de olho no futuro.
Na época do julgamento do Mensalão fui o único advogado a sugerir a utilização da técnica da ruptura de Jacques Vergès. O texto foi divulgado na internet, mas o website em que ele foi publicado originalmente não existe mais (vide 1). Os advogados dos líderes petistas optaram por defesas técnicas destroçadas pelos ministros do STF. Quando o caso do Triplex envolvendo Lula começou, sugeri aos defensores dele algo semelhante (vide 2). Cristiano Zanin também optou por uma defesa técnica e foi destroçado na 13ª Vara de Curitiba, no TRF-4 e no STJ. Ele ganhou no STF em meados de 2021, mas a vitória foi obtida porque naquele momento a própria Suprema Corte estava se sentindo ameaçada pela sanha autoritária e golpista dos Bolsonaro.
Se o STF não tivesse sido obrigado a reagir à pressão política autoritária do clã Bolsonato, o mais provável teria sido a legitimação do Lawfare que jogou Lula para fora da política colocando-o injustamente nula cela. Nunca é demais lembrar que em agosto de 2018, portanto, três anos antes de considerar a condenação do Triplex nula, que o próprio STF ignorou decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU que garantiram a Lula o direito de disputar a eleição contra Jair Bolsonaro. Os Ministros da Suprema Corte facilitaram a eleição de Bolsonaro e só perceberam o erro que cometeram quando ele ameaçou devorá-los.
Tudo isso é história, por certo, mas ajuda a contextualizar o julgamento dos líderes do golpe de 2023. Contextualizar o que ocorreu nos permite entender como a Suprema Corte brasileira funciona.
O STF é um tribunal técnico, mas nem sempre a técnica jurídica predomina nas decisões proferidas pela Corte. Uma prova disso foi dada por Luiz Fux durante o processo do Mensalão: ele condenou José Dirceu porque ele não provou sua inocência, transformando o princípio constitucional da presunção de inocência em princípio da presunção de culpa. Outra prova do oportunismo ou seletividade técnica do STF foi dada quando Rosa Weber mudou seu próprio entendimento para garantir a prisão de Lula com base numa condenação criminal que não havia transitado em julgado.
Não estou dizendo aqui que hoje o STF deixou hoje de proferir uma decisão técnica no caso dos líderes do golpe de 2023. Na verdade, é muito difícil não concordar com a rejeição das preliminares levantadas pelos defensores dos bolsonaristas. A aceitação da denúncia era inevitável tamanha a profusão de indícios que os próprios envolvidos deixaram de seu compromisso com a ruptura da legalidade. Meu ponto é outro.
Os advogados dos líderes golpistas poderiam ter aprendido (e ainda podem aprender) que, em se tratando da Suprema Corte brasileira, é sempre preciso ir além da técnica jurídica e de certa maneira romper com a dinâmica que a permite ser seletiva quando convém aos Ministro dela (tese de Jacques Vergès). O STF deveria ser obrigado a julgar justamente aquilo que ele se recusa a julgar por causa da omissão do PGR em favor das plataformas de internet porque isso se tornaria embaraçoso.
A Suprema Corte tem competência para apreciar e julgar todos os envolvidos no golpe de 2023, mas nem todos foram denunciados. E eu realmente não consigo entender porque os advogados de Jair Bolsonaro e dos co-réus não alegaram a nulidade da denúncia por que os donos do Facebook, Twitter-X, YouTube etc… foram preventivamente inocentados pelo PGR quando na verdade eles foram os atores que obtiveram mais lucro com a campanha golpista. Suponho que os bolsonaristas ficarão surpresos ao ler meu texto e que os juristas petistas sentirão vontade de me crucificar. No problemo. Não presto contas a nenhum grupo político. E continuarei fazendo o que faço melhor: observando a encenação de longe e opinando de maneira fundamentada.
Não posso concordar com a impunidade das plataformas de internet nesse caso. Isso seria juridicamente inadequado, injusto e muito perigoso do ponto de vista político. A Folha de São Paulo e vários outros jornais apoiaram o golpe de 1964, lucraram com a ditadura militar e nunca foram responsabilizados pelos danos políticos que causaram ao Brasil e pelas tragédias familiares e humanas (tortura, perseguições, assassinatos políticos, etc) que viabilizaram, acobertaram e eventualmente legitimaram. A mesma impunidade está sendo agora concedida aos donos das plataformas de internet que aderiram ao golpe de 2023 para obter lucro. Nesse caso, a tragédia não se repete como farsa, mas como uma tradição do sistema de justiça brasileiro. Não podemos melhorar nessa questão também?
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
FONTE: JORNAL GGN