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O parecer do CNPq: um retrato de estereótipos, por Bruno Alcebino da Silva

29 de dezembro de 2023

iStockPhoto

O caso envolvendo Maria Carlotto, expôs de forma contundente as persistentes desigualdades de gênero no ambiente acadêmico brasileiro.

por Bruno Fabricio Alcebino da Silva

A recente situação envolvendo Maria Carlotto, cientista social, professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC (UFABC), expôs uma realidade alarmante que permeia o cenário acadêmico brasileiro. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, negou a ela uma bolsa produtividade, utilizando argumentos que revelam preconceitos profundamente enraizados, como misoginia, sexismo e aversão à maternidade.

Maternidade e a academia

A denúncia de Carlotto, compartilhada em suas redes sociais, expôs uma postura discriminatória por parte do CNPq, que associou a ausência de estudos no exterior da pesquisadora à sua condição de mãe, tendo dado à luz a dois filhos nos últimos anos.

No tweet que expôs a denúncia, Carlotto questiona o resultado preliminar da bolsa produtividade, que reconheceu sua carreira, mas destacou a ausência de pós-doutorado no exterior. A justificativa apresentada no parecer chama a atenção ao sugerir que suas gestações teriam atrapalhado suas iniciativas acadêmicas, com uma vaga promessa de compensação no futuro. Esse teor do parecer revela uma visão arcaica e discriminatória, subestimando a capacidade das mulheres com filhos de se destacarem como doutoras, pesquisadoras e professoras.

A antropóloga Debora Diniz não hesitou em criticar veementemente o parecer do CNPq, apontando para elementos de colonialismo, misoginia e arrogância presentes nas entrelinhas do documento. Ela destaca a visão limitada do parecerista, que parece ignorar a possibilidade de uma formação sólida e continuada no próprio país, desconsiderando a competência de mulheres com filhos para desempenhar papéis significativos na academia.

Em resposta ao ocorrido, o CNPq emitiu um pedido de desculpas, reconhecendo a inadequação do juízo emitido e ressaltando a ausência de requisitos específicos para estágios no exterior. Contudo, a retratação não foi suficiente para Debora Diniz, que enfatizou a necessidade de ações institucionais para reverter o ciclo decisório das bolsas. Ela exige o treinamento e substituição dos pareceristas, visando garantir um processo mais transparente e justo.

O CNPq, em sua declaração, afirmou não tolerar preconceitos de qualquer natureza e prometeu instruir seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de pareceres. No entanto, Maria Carlotto ressalta que, mesmo com a possibilidade de recurso, a violência de gênero já foi cometida. Isso suscita questionamentos mais amplos sobre a construção de editais acadêmicos de maneira mais inclusiva, especialmente para mulheres que são mães.

A situação evidencia a urgência de repensar e reformar as estruturas acadêmicas, promovendo uma cultura de respeito à diversidade e igualdade de oportunidades. O caso de Maria Carlotto não é apenas um incidente isolado, mas um reflexo de desafios sistêmicos enfrentados por mulheres na academia, ressaltando a importância de uma abordagem crítica e transformadora.

Desigualdades de gênero na academia: um olhar sob as teorias de Fraser e Butler

O caso envolvendo Maria Carlotto, expôs de forma contundente as persistentes desigualdades de gênero no ambiente acadêmico brasileiro. A recusa de bolsa produtividade pelo CNPq, ressaltou a existência de viés misógino e sexista, com a maternidade sendo injustamente considerada como empecilho à carreira científica.

Ao ampliar essa discussão, é pertinente trazer as reflexões de duas importantes teóricas contemporâneas, Nancy Fraser e Judith Butler, cujas obras lançam luz sobre as complexas dinâmicas de reconhecimento e inclusão nas estruturas sociais.

Nancy Fraser, conhecida por suas contribuições à teoria crítica e feminista, destaca em sua obra Justiça interrompida: Reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista” a necessidade de uma transformação coletiva nos termos e condições que regem as políticas de reconhecimento. A autora alerta para a insuficiência de abordagens que se limitam à visibilidade e inclusão, sem abordar as estruturas mais profundas que perpetuam as desigualdades.

A recusa da bolsa a Maria Carlotto, com base em critérios que desconsideram sua competência e relevância acadêmica, encontra eco nas críticas de Fraser à superficialidade de políticas que não questionam os fundamentos das normas sociais. A autora argumenta que a transformação deve ser radical e coletiva, exigindo uma revisão profunda das estruturas que perpetuam a marginalização.

Por sua vez, Judith Butler, filósofa e teórica queer, oferece uma perspectiva valiosa ao abordar as interseccionalidades de gênero, identidade e poder. Em sua obra Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, Butler desconstrói concepções normativas de gênero, evidenciando como as normas sociais moldam e restringem as identidades.

A negação da bolsa a Carlotto, associada à sua maternidade, ecoa as críticas de Butler à imposição de normas sobre o corpo das mulheres. A maternidade, ao invés de ser celebrada como uma dimensão da vida, é tratada como um obstáculo à plena participação nas esferas acadêmicas, reproduzindo estereótipos prejudiciais.

Em sua obra Frames of War: When Is Life Grievable?, Butler também aborda a questão da “grievability”, ou seja, de quem é digno de ser chorado ou reconhecido. No caso de Carlotto, a recusa da bolsa revela uma lógica que desconsidera a relevância de suas contribuições, questionando quem, dentro das estruturas acadêmicas, é considerado digno de reconhecimento e valorização.

Em síntese, ao contextualizar o caso de Maria Carlotto dentro das perspectivas de Nancy Fraser e Judith Butler, percebemos que as desigualdades de gênero não são apenas incidentes isolados, mas reflexos de estruturas profundas que demandam uma abordagem crítica e transformadora. O desafio é não apenas corrigir casos específicos de injustiça, mas sim questionar e reformar as bases que perpetuam a marginalização de mulheres na academia e em outros espaços sociais.


Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

FONTE: JORNAL GGN

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