Não acredite no mito de que é preciso sacrificar vidas para salvar a economia

Os governos devem fazer tudo o que for necessário – e custe o que custar – pelo bem de nossa saúde e de nossa riqueza coletiva
Seria a cura pior que a doença? Recentemente, o The Times afirmou: “Se o confinamento decorrente da epidemia do coronavírus levar a uma queda no PIB de mais de 6,4%, mais anos de vida serão perdidos por causa da recessão do que ganhos com a derrota do vírus”. É difícil saber por onde começar a desmontar tamanha bobagem. A afirmação se baseia em um artigo em fase de revisão em uma revista intitulada Nanotechnology Perceptions, que simplesmente supõe que uma queda no PIB se traduz mecânica e diretamente numa queda na expectativa de vida.
É esse tipo de raciocínio que parece levar o presidente Trump a pedir o fim antecipado das restrições nos EUA, alegando que muito mais pessoas cometeriam suicídio por causa de uma “economia terrível” do que morreriam por causa do vírus.
Mas a premissa está simplesmente errada. Uma recessão – uma queda de curta duração e temporária do PIB – não precisa reduzir, e de fato normalmente não reduz, a expectativa de vida. Na verdade, contraintuitivamente, há evidências de que as recessões aumentam a longevidade. De fato, os suicídios aumentam, mas outras causas de morte, como acidentes de trânsito e doenças relacionadas ao álcool, diminuem.
Portanto, no nível mais básico, esse argumento ignora o que mostram as evidências. Mas, talvez o mais importante seja destacar o quão terrível é a ideia de que para minimizar os danos econômicos seja preciso retirar as restrições de movimento antes que tenham cumprido seu papel – parar definitivamente a propagação do vírus.
Alguém acredita que, o que quer que o governo diga, poderemos voltar ao “normal”, ou algo próximo disso, em breve? Se todos pudéssemos voltar ao trabalho, muitos ou a maioria de nós escolheria, de maneira bastante racional, não fazê-lo, por medo de contrair o vírus. E se, como preveem os cientistas, o resultado de afrouxar a quarentena fosse uma aceleração das infecções, muito em breve muitas empresas simplesmente parariam de funcionar, pois os trabalhadores teriam adoecido ou precisariam ficar em casa para cuidar de membros da família.
De maneira mais ampla, para que a economia volte ao normal é preciso, acima de tudo, confiança. Em meio à contínua incerteza sobre suas próprias finanças e a economia do país, as famílias não gastam e as empresas não investem. E isso simplesmente não vai acontecer até que a propagação da doença seja contida.
Portanto, não se trata de uma escolha. As considerações econômicas e sanitárias apontam exatamente na mesma direção no curto prazo. Façam o que for preciso – e custe o que custar – e façam agora, pelo bem de nossa saúde e de nossa riqueza coletiva.
Mas o que vem depois? É bastante razoável apontar que sérios danos à economia, se persistirem no longo prazo, reduzirão nosso bem-estar social e talvez até – como ocorreu com a austeridade e suas consequências – a expectativa de vida. Nos últimos 10 dias, os pedidos de crédito universal aumentaram mais de cinco vezes, para meio milhão, enquanto os dados do YouGov sugerem que dois milhões de pessoas podem ter perdido o emprego. A recessão já está aqui.
Mas isso não precisa nem deve ser permanente. O risco aqui é que se permita que a inevitável queda do PIB resultante da paralisação da economia leve as empresas à falência e deixe os trabalhadores em situação de desemprego por um longo período. Nisso, não há nada de inevitável.
Afinal, muitos países europeus, como França ou Itália, provavelmente veem seu PIB cair em 10% ou 20%, mais ou menos, em termos absolutos, todo mês de agosto, quando os trabalhadores tiram férias de verão. Ninguém nota – os números são “ajustados sazonalmente” para levar as férias em consideração, o que significa que não aparece nos dados publicados – nem há prejuízos. Os trabalhadores continuam sendo pagos e os negócios não quebram porque não estão ganhando dinheiro. Em setembro, todos voltam ao trabalho normalmente.
Claro que a situação hoje é muito diferente – nada disso acontecerá automaticamente com o Covid-19. Os impactos são mais amplos e duradouros – e não sabemos quão duradouros – do que um feriado extra forçado. Mas uma ação rápida e apropriada do governo será decisiva. Manter os empregos e garantir a sobrevivência das empresas precisa ser a prioridade. Nessas circunstâncias, o governo começou bem, embora haja muito mais a fazer.
Portanto, o que deve nos preocupar – tanto do ponto de vista econômico quanto de saúde – não é quanto o PIB cairá. Vai cair muito, e isso é bom. Se isso não acontecesse – se as pessoas ainda estivessem trabalhando apesar da ordem para parar – o confinamento não estaria funcionando e ainda veríamos as consequências econômicas por muito mais tempo. O que importa é o que acontecerá com o PIB em um ano ou 18 meses.
E as consequências de longo prazo? Não foi a queda acentuada do PIB em 2008-9 que reduziu, ao longo da década seguinte, a expectativa de vida dos mais pobres em nossa sociedade. Foi a forma que o governo escolheu para lidar com os impactos econômicos da crise financeira global – subfinanciando e enxugando o número de empregados do NHS (Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido) e da seguridade social, e desmontando a rede básica de bem-estar social da qual muitos dependem em tempos difíceis. Como estamos descobrindo, foram falsas economias que nos deixaram menos, não mais, preparados para esta crise.
Da mesma forma, se permitirmos que o Covid-19 cause danos permanentes em nosso tecido econômico e social, a culpa será nossa, não do vírus. Desta vez, podemos e devemos fazer melhor.
Jonathan Portes é professor de economia e políticas públicas no King’s College de Londres e ex-funcionário público
*Publicado originalmente em ‘The Guardian‘ | Tradução de Clarisse Meireles
FONTE: CARTA MAIOR
FOTO: Dan Kitwood/Getty Images