Ambiente digital falha na proteção de meninas mundo afora

Ambiente digital falha na proteção de meninas mundo afora. Reino Unido e Brasil, por exemplo, têm estudos que apontam o quanto a infância e a adolescência são vulneráveis a diversos crimes na internet, inclusive pedofilia Créditos: Shutterstock
Reino Unido e Brasil, por exemplo, têm estudos que apontam o quanto a infância e a adolescência são vulneráveis a diversos crimes na internet, inclusive pedofilia
Fonte: Revista Fórum
As plataformas digitais continuam falhando em garantir a segurança de meninas e adolescentes em todas as fases de uso online. É o que mostra o relatório Targeting of Girls Online, publicado em maio de 2025 pela Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra Crianças (NSPCC, da sigla em inglês), uma das principais instituições britânicas de proteção infantil.
A pesquisa britânica revela que, em dez das plataformas mais populares, funcionalidades como perfis públicos, sugestões automatizadas de amizade e ausência de moderação expõem meninas ao assédio, aliciamento e abuso sexual.
O cenário brasileiro é igualmente alarmante. Segundo relatório conjunto da InHope e SaferNet, o Brasil foi, em 2024, o quinto país com mais denúncias de abuso sexual infantil online, com mais de 52 mil páginas identificadas contendo esse tipo de material.
Só no ano passado, a SaferNet recebeu 52.999 denúncias formais, após o recorde de 71.867 casos em 2023. O aplicativo Telegram concentra grande parte da circulação de conteúdos ilegais, com mais de 2,6 milhões de usuários envolvidos em grupos de pornografia infantil.
Estudo da Universidade Federal do Paraná (O aliciamento de crianças e adolescentes no meio digital) mostra que criminosos utilizam tanto plataformas abertas como redes sociais, quanto fóruns na dark web, para recrutar vítimas, distribuir material ilegal e organizar esquemas transnacionais de exploração.
Outro levantamento internacional da ONG Plan International, com dados de 22 países, revelou que 77% das meninas brasileiras relataram sofrer algum tipo de assédio online — número muito acima da média global de 58%. As formas mais comuns incluem ameaças, comentários sexistas, exposição indevida de fotos e cyberbullying.
A pesquisa Disrupting Harm Brasil, conduzida por Unicef, ECPAT e Interpol, mapeou a violência sexual online a partir de entrevistas com jovens entre 16 e 24 anos que relataram ter sido vítimas de abusos antes dos 18. O estudo aponta falhas na detecção precoce dos casos, baixa taxa de denúncia e falta de acesso a canais de proteção eficazes, além da ausência de uma legislação específica voltada à segurança digital da infância.
Dados do relatório TIC Kids Online Brasil (CETIC.br) de 2022 mostram que 39% das crianças entre 9 e 10 anos e 60% das que têm entre 11 e 12 anos acessam jogos online interativos — muitas vezes sem supervisão. Nesses espaços, são expostas a linguagem agressiva, conteúdos sexualizados e interações com desconhecidos, o que amplia os riscos.
O governo Lula lançou, em 2023, uma cartilha educativa sobre cidadania digital, alertando para riscos como exposição de dados, assédio e pornografia infantil, e indicando canais como o Disque 100, a Polícia Federal e a Plataforma da SaferNet como meios oficiais de denúncia. No entanto, essa ação ainda é pontual e insuficiente frente à gravidade do problema.
Reino Unido avança no combate à pedofilia digital
O Reino Unido vem se destacando globalmente no enfrentamento à pedofilia infantil na internet com um conjunto de medidas integradas: legislações duras, campanhas de conscientização, investigações especializadas e colaboração internacional.
O principal marco é a Lei de Segurança Online (Online Safety Act 2023), que impõe às plataformas digitais o dever legal de prevenir, detectar e remover conteúdos ilegais, como o abuso sexual infantil. A norma exige ainda avaliação contínua de riscos, verificação de idade e canais acessíveis de denúncia. O regulador Ofcom tem poder para aplicar multas de até 18 milhões de libras (cerca de 54,4 milhões de reais) ou 10% do faturamento global das empresas.
A fiscalização tem se intensificado. Em 2025, o Ofcom abriu investigações contra plataformas como o 4chan e reforçou o controle sobre sites pornográficos. Organizações como a NSPCC lideram campanhas educativas e operam linhas de apoio, como a Childline.
O país também conta com o comando CEOP, da Agência Nacional de Crimes, que investiga aliciamento e distribuição de pornografia infantil, além da Internet Watch Foundation (IWF), que rastreia e remove conteúdo ilegal com uso de tecnologia de hash.
Em resposta aos avanços tecnológicos, o Reino Unido foi o primeiro país a criminalizar, em 2025, o uso de inteligência artificial para criar deepfakes sexuais de crianças. No plano internacional, firmou parceria com os EUA e integra a WeProtect Global Alliance, fortalecendo o combate global à exploração infantil.
No Brasil falta regulação e sobram omissões
Já o Brasil, apesar da gravidade dos dados, o combate à exploração sexual infantil na internet ainda ocupa posição secundária na política. O debate sobre regulação das redes sociais avança lentamente e enfrenta resistência no Congresso Nacional, dominado por interesses de empresas de tecnologia e parlamentares bolsonaristas mais interessados em “lacrar” nas redes do que debater com seriedade as questões nacionais.
O principal projeto em discussão, o PL 2630/2020 (o “PL das Fake News”), prevê transparência algorítmica, deveres de cuidado com crianças e responsabilidade das plataformas por conteúdos impulsionados. Apesar de ter avançado no Senado, encontra-se paralisado na Câmara desde 2023, sob forte lobby de empresas como Google, Meta e TikTok e do populismo bolsonarista com a ladainha de proteger a “liberdade de expressão”.
Enquanto isso, projetos que propõem a criminalização da apologia à pedofilia, a tipificação de novas formas de aliciamento online e a inclusão de filtros infantis obrigatórios seguem fragmentados e sem articulação política.
No Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403 está tramitando e trata da constitucionalidade de dispositivos do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), com foco especial na responsabilidade das plataformas digitais diante de conteúdos que violem direitos fundamentais. Ministros como Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes já defenderam que as empresas devem ser responsabilizadas por omissão em casos de violência digital, incluindo a pedofilia. O julgamento volta nesta quarta-feira (11).
O que falta?
Especialistas de diferentes países alertam para a urgência de um marco legal robusto e unificado que regule as redes sociais, responsabilize efetivamente as plataformas digitais, proteja a infância e enfrente com firmeza a pedofilia online. Leis específicas voltadas à segurança digital de crianças e adolescentes devem prever mecanismos claros de prevenção, detecção, denúncia e punição — incorporando a responsabilidade conjunta dos poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público, empresas de tecnologia e sociedade civil.
A alfabetização midiática de crianças, adolescentes e seus responsáveis, bem como a implementação de programas contínuos de educação digital nas escolas, são passos indispensáveis para reduzir vulnerabilidades — especialmente de meninas, que continuam sendo os principais alvos de abusos e aliciamento na internet.
Sem vontade política, sem regulação efetiva e sem ações articuladas, os países continuarão falhando diante de um crime que se reinventa a cada nova tecnologia. A permanência de nações como o Brasil entre os líderes globais em denúncias de pornografia infantil na rede não é apenas um fracasso institucional: é o espelho de uma negligência coletiva frente a uma das formas mais graves e silenciosas de violência contra crianças no século XXI.