Dados das universidades públicas nas mãos das big techs, por Lia Ribeiro Dias
REPRODUÇÃO
As big techs foram ganhando espaço junto a administração pública tanto do governo federal como dos governos estaduais
por Lia Ribeiro Dias
Sem recursos para investir em infraestrutura de TI, as universidades federais estão armazenando boa parte de seus dados, inclusive de pesquisas, em data centers de empresas estrangeiras. A denúncia foi feita no seminário sobre Soberania Digital, realizado hoje na Câmara dos Deputados.
Não se pode falar hoje em soberania de um país, sem levar em conta a soberania digital, pois os dados, na primeira década do século 21, se transformaram em insumo fundamental da economia. E as plataformas digitais, que cresceram e adquiriram poder, capturando e processando dados de seus usuários, são hoje grandes corporações com faturamento igual ao PIB de muitos países. É nesse cenário adverso, lembrou Marcio Pochmann, presidente do IBGE, que o país vai ter que construir suas políticas nessa área. “De fato, o Brasil não tem soberania digital”, disse Pochmann, um dos painelistas do seminário sobre Soberania Digital, realizado hoje, em Brasília, pela Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara dos Deputados por iniciativa do deputado Rui Falcão (PT/SP). O seminário foi aberto por Eliana Azambuja, representante do MCT&I.
Se as condições de contorno são difíceis, pois as big techs foram ganhando espaço junto a administração pública tanto do governo federal como dos governos estaduais, houve consenso entre os painelistas de que o Brasil tem instrumentos e tem inteligência para desenhar uma política que leve à soberania digital. Otimista, embora seja responsável por uma nau quase à deriva (o data center da UFRJ está sem refrigeração desde novembro de 2023), Ana Maria Almeida Ribeiro, coordenadora de TI da universidade, tem certeza de que se o governo fortalecer as estruturas de TI das universidades federais e criar data centers federados para as universidades brasileiras, com o Serpro e a Dataprev como as principais infraestruturas de armazenamento de dados públicos, um eixo relevante da questão da soberania digital estaria solucionado.
Mas, para isso, a cultura das estatais de TICs precisaria mudar radicalmente, como apontou Sergio Amadeu da Silveira, professor do Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC, e Ilara Hammerli de Moraes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. Crítico da transferência de dados públicos para data centers físicos ou em nuvem de big techs, Silveira mencionou que 71,53 % das universidades brasileiras usam e-mails do Google e 7,64% da Microsoft.
O professor da UFABC mostrou ainda que as interações no chat dos cidadãos que usam o Sou gov.br, aplicativo que reúne serviços relacionados à vida funcional do usuário, podem ser transferidas para o exterior e usadas pela IBM para alimentar o aprendizado de máquina da ferramenta de chat Watson. Obviamente de forma gratuita. O Sou gov.br . é um dos muitos apps do serviço gov.br oferecido ao cidadão brasileiro pelo Serpro, empresa de TIC ligada ao Ministério da Fazenda. O Sou gov.br usa tecnologia da IBM e o serviço traz as informações relativas à transferência internacional dos dados das interações do usuário e seu armazenamento no exterior pelo período de 30 dias. “As empresas públicas de TICs estão sendo usadas como barrigas de aluguel das big techs”, afirmou Silveira.
Três camadas
Segundo a professora Ilara, hoje vivemos a situação em que a escolha é feita pelo mercado. Mas ela se alinha com a posição de que é possível construir um projeto de soberania digital à moda brasileira, que contemple pelo menos as três camadas que considera mais sensíveis. A primeira delas é a camada da infraestrutura soberana. Para isso, o governo conta com três empresas; Dataprev (ligada à Previdência), Serpro (Fazenda) e RNP (que não é empresa pública, mas OS e sua relação é com o MCT&I)).
Em todas elas, há problemas. No caso da Dataprev, a professora Ilara diz ser difícil fazer uma avaliação frente à baixa transparência dos termos de uso das soluções, o que não acontece no Serpro onde há muito mais transparência em relação ao funcionamento dos aplicativos e a como os dados pessoais do usuário são tratados. O que não quer dizer que o tratamento seja adequado. “O gov.br usa cookies de terceiros, basicamente da Google que provê a publicidade e conteúdo multimídia. Por meio da navegação acionada por esses cookies os dados alimentam redes sociais como Youtube e Facebook”, relata. O termo de uso diz claramente que o serviço não tem controle sobre os cookies de terceiros e, se o usuário quiser desativá-los, tem que ir no site da Google. Em relação à RNP, a professora da Fiocruz diz que a instituição, que é patrimônio da sociedade brasileira, precisa retomar sua rota original.
A segunda camada necessária para construir a política de soberania digital, no entender de Ilara, é desenvolver uma inteligência coletiva pública articulada e sustentável. Traduzindo: fomentar o trabalho coletivo dentro das universidades, que contam com equipes estáveis, para desenvolver novas soluções, criando o efeito rede. E, como terceira camada, o que ela chama de justiça cognitiva, ou seja, envolver os movimentos sociais e populares no debate sobre o que é a soberania digital, qual sua importância e porque ela, hoje, está umbilicalmente integrada à soberania do país.
Tal como a professora da Fiocruz, Nelson Pretto, professor da Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFBa, considera urgente e essencial que se resgate o papel histórico que a RNP já cumpriu como estrutura soberana que não só conectou as universidades federais e institutos de ensino como desenvolveu importantes sistemas de comunicação e compartilhamento de informações. “Infelizmente, nos últimos tempos, a RNP se transformou em market place do Google e da Microsoft para universidades. Queremos que abandone esta subalterna posição e volte a ser a instituição que integra as universidades públicas e seus data centers em redes federadas”, defendeu.
Para Pretto, não é possível mais que as big techs continuem fazendo o que querem e que continuem, juntamente com as grandes fundações de ensino, a assediar o ensino público brasileiro, ameaçado com privatizações parciais, escolas militares e cortes sucessivos. “A educação é um bem público”, lembrou o professor. Ele mencionou que, segundo levantamento da SBPC, há um déficit de 50%, em relação a 2011, no orçamento de custeio das universidades e defendeu a necessidade de se fortalecer o sistema superior de educação e ciência.
Lia Ribeiro Dias é jornalista e especialista em telecomunicações.
FONTE: JORNAL GGN